No tempo em que a Vale era estatal, e nossa
Sou do tempo em que a Vale não visava apenas o lucro. Era estatal e nossa. Era ainda a Companhia Vale do Rio Doce e, entre outras ações sociais, patrocinava dois clubes de futebol profissional: a Desportiva de Vitória (hoje com outro nome) e o Valeriodoce de Itabira (atualmente amargando a terceira Divisão de Minas). E apoiava dezenas de equipes amadoras das Gerais e do Espírito Santo. Tínhamos, os moradores de localidades servidas pela Estrada de Ferro Vitória-Minas, no mínimo, renovados jogos de camisa para ostentarmos nos gramados.
Para nós, os filhos de ferroviários, a vida era mais tranquila ainda. A Vale do Rio Doce disponibilizava, em cada cidade que chegávamos quadras esportivas e, a cada Natal, ganhávamos lindas bolas de futebol. Além disso, tínhamos passe-livre no Expresso que nos levava às praias capixabas ou à capital de todos os mineiros.
Nossa existência foi forjada, desde sempre, em todos os tipos de viagens. A primeira e mais forte era essa, a de trem. A estrada de ferro tinha seus dormentes firmes, presos por vincos igualmente fortes, e um rumo inalterado. Éramos treinados e dominados por essa certeza inabalável. Brincávamos de fechar os olhos por 20, 25 minutos e adivinhar em que parte do trecho estávamos: reta que vai dar na Galiléia, pontilhão sobre o Rio Guatituba, túnel próximo ao campo do Itueta, o apito antes da perigosa curva de Resplendor… E só abríamos os olhos para admirar o Rio Doce, em todos os seus trechos.
Todo esse exercício de memória, a despeito de hoje não me servir para absolutamente nada, deixou-me marca indelével: a criação de um mundo único, acima do mal e dos “estranhos”. Éramos privilegiados, sabíamos disso, mas o nosso privilégio real era outro: saber que tínhamos uma companhia nossa, do povo brasileiro, a maior do mundo quando o assunto era minério.
Mas, tudo passa e a inocência um dia se perde. E o tempo passa. No período entre a juventude e a vida adulta, houve um presidente da República (Fernando Henrique Cardoso, vulgo FHC) que vendeu a Vale do Rio Doce como se pudesse, e como se a memória afetiva da gente fosse tão somente um cacho de banana.
E agora, no período entre a vida adulta e a velhice, há uma outra Vale, a privatizada, que só visa lucro e que por ganância e falta de fiscalização despejou bilhões de litros de lama nas Minas Gerais e no Espírito Santo, causando estragos indescritíveis e matando o Rio Doce.
Faz pouco passei pelo Rio Doce, mas é melhor fechar os olhos e não ver o estrago. Toda a geração da Vale estatal e nossa sabe que a Vale privatizada e deles matou o Rio Doce. Parodiando Drummond, o Rio Doce agora é só um retrato na parede, por culpa da nova Vale – e como dói.
Ailton Alves
Jornalista da FESERP-MG