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Até quando vamos suportar o processo de asfixia financeira do SUS?

por Francisco R. Funcia

foto: Marcelo Camargo / ABr

De 2018 até o início da pandemia da Covid-19, o SUS federal perdeu R$ 22,5 bilhões como consequência da EC 95/2016, conhecida como ‘Teto de Gastos’

O objetivo deste artigo é caracterizar o processo de asfixia financeira do Sistema Único de Saúde (SUS) como sendo resultado do desfinanciamento promovido pela Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, bem como da manutenção desse processo até mesmo durante a pandemia da Covid-19. Tratei desse tema na 19ª Carta de Conjuntura da USCS, disponível na íntegra em www.uscs.edu.br/noticias/cartasconjuscs.

De 2018 até o início da pandemia da Covid-19, o SUS federal perdeu R$ 22,5 bilhões como consequência da EC 95/2016, conhecida como ‘Teto de Gastos’ (com impactos negativos para o financiamento da saúde pelos governos estaduais e municipais, pois cerca de dois terços do orçamento do Ministério da Saúde são transferências fundo a fundo).

Esse desfinanciamento federal do SUS expressa uma das situações que caracteriza o processo de asfixia financeira do SUS: retirar recursos federais, cujo total já era insuficiente para o atendimento das necessidades de saúde da população – afinal, os gastos públicos em saúde nas três esferas de governo totalizaram R$ 3,79 per capita por dia e representavam 4,0% do PIB em 2019 (quase a metade dos 7,9% do Reino Unido, conforme dados da Organização Mundial de Saúde).

A necessidade de recursos adicionais foi manifestada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), que coordenou a mobilização da sociedade em prol dos 10% das Receitas Correntes Brutas (movimento conhecido como “Saúde+10”, com mais de 2,2 milhões de assinaturas protocoladas no Congresso Nacional com o Projeto de Lei PLP 321 em 2013). Se fosse aprovado, esses recursos adicionais (cerca de R$ 40 bilhões) seriam utilizados, conforme deliberação do Conselho Nacional de Saúde, para fortalecer as ações da atenção básica em saúde, de modo que se transformasse na ordenadora da rede de cuidados de saúde, e para valorização dos profissionais do SUS.

Conforme Funcia (2019), esses recursos adicionais poderiam ter sido utilizados para, de forma conjunta, quadruplicar o então Piso da Atenção Básica (PAB Fixo), a Farmácia Básica-PAB, ampliar em 50% o Programa de Agentes Comunitários de Saúde e do Programa de Saúde da Família (PACS/PSF) e quadruplicar o valor das despesas empenhadas com o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) pelo Ministério da Saúde. Além dessas ações, seria possível também ampliar o “Programa Mais Médicos”.

E quais seriam as fontes de financiamento? Funcia (2019) indicou duas medidas combinadas para esse fim: a auditoria cidadã da dívida pública e a revisão da renúncia da receita, especialmente aquela vinculada à Função Saúde. Além disso, segundo Alves et al. (2020), se houver gestão eficiente da dívida ativa da União, é possível arrecadar bem mais que os R$ 24 bilhões de 2019, considerando que o estoque era de R$ 2,4 trilhões (e desse total, R$ 800 bilhões classificados em condições positivas de recebimento).

Mas, o desfinanciamento do SUS desde 2018 reduziu recursos para o “Programa Mais Médicos” (hoje chamado “Médicos pelo Brasil”) e para a atenção básica, com destaque para o novo modelo de financiamento da atenção primária da saúde criado no final de 2019, com impactos negativos para a manutenção e ampliação das equipes de saúde da família, dentre outros.

Em termos concretos, houve queda do piso federal per capita do SUS  no período 2017-2019 (e até 2021), bem como na aplicação federal per capita – de R$ 595,00 em 2017 para R$ 583,00 em 2019 (valores calculados a preços de 2019).

Aparentemente, a pandemia da Covid-19 representava a oportunidade concreta do governo federal financiar adequadamente o SUS, considerando a flexibilização do teto de despesas primárias e de outras regras fiscais em consequência da decretação do estado de calamidade pública em 2020.

Mas, não foi o que se viu na alocação de recursos adicionais para o Ministério da Saúde (MS), bem como na respectiva execução orçamentária e financeira – conforme várias edições do Boletim Cofin do Conselho Nacional de Saúde, de um lado, houve tanto lentidão no uso dos recursos orçamentários destinados para o enfrentamento da Covid-19 (o que ocorreu principalmente nos meses de julho e agosto de 2020, depois que o número de casos e de mortes tinha crescido bastante), como atraso na alocação de recursos para vacina (foram acrescidos no orçamento R$ 20 bilhões somente na segunda quinzena de dezembro de 2020).

Essa situação, que também caracteriza o processo de asfixia financeira do SUS, foi agravada pela decisão do MS em encaminhar a peça orçamentária de 2021 sem um centavo programado para o enfrentamento da Covid-19, o que está sendo viabilizado por meio de abertura de créditos extraordinários, procedimento que pode ser adotado somente para despesas emergenciais e imprevistas (como foi em 2020, diferente da situação de 2021).

Houve queda das transferências do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos de Saúde dos Estados e Municípios, inclusive para o financiamento das ações de enfrentamento da Covid-19 – respectivamente, queda de 17% e 63% no primeiro quadrimestre de 2021 em comparação ao 3º quadrimestre de 2020, mesmo diante do crescimento do número de casos e mortes verificados no período.
Por fim, na programação orçamentária para 2022, somente R$ 7,1 bilhões foram destinados para o enfrentamento da Covid-19, insuficiente em comparação aos valores empenhados em 2020 e 2021 (até o momento).

Portanto, diante da crise sanitária e das preocupações dos especialistas sobre a lentidão no processo de vacinação em massa, diante da necessidade de aplicação da terceira dose e da possibilidade concreta da vacinação anual por alguns anos, a questão orçamentária do MS continua sendo tratada nos termos da austeridade fiscal: mesmo com a flexibilização das regras em 2020 e com a forma encontrada para “burlar” o teto de despesas primárias em 2021, não há recursos federais disponibilizados para planejar a gestão orçamentária e financeira do SUS federal juntamente com os estados e municípios.

Pelo contrário: essa situação é a expressão do Plano Nacional de Saúde 2020-2023, que não apresenta nenhum objetivo e meta para o combate à pandemia. Continua atual a proposta de Moretti et al. (2020): “No contexto do aumento da pobreza e da desigualdade na sociedade brasileira, o governo federal precisa revogar imediatamente o teto de gastos e a regra estabelecida para o piso federal da saúde (Emenda Constitucional 95/2016) para enfrentar a recessão e o coronavírus”.

Enquanto isso não acontece, o quadro de asfixia financeira do SUS continua e se agrava. Até quando?

* Francisco R. Funcia é Economista e Mestre em Economia Política pela PUC-SP, Doutorando em Administração no Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), Pesquisador do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS (Conjuscs), Professor dos Cursos de Economia e Medicina da USCS, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) e Consultor Técnico da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS). Secretário de Finanças de Diadema desde 1º de janeiro de 2021.

Fonte: Rede Brasil Atual – RBA